O que facilitou a emergência da burrice ostentação no Brasil?
Não é uma resposta simples, e nem tem uma única causa, mas uma minoria significativa da população se enquadra neste perfil, orgulham-se de sua burrice, e ignoram a própria ignorância.
Não se pode culpar o analfabetismo, com apenas 5,6% da população acima dos 15 anos analfabetas, e com 29% da população analfabeta funcional, e ainda não cabe à educação básica esta conta, com 53,2% da população com ensino médio completo. Existem pessoas deste grupo que fazem parte do "bloco da burrice ostentação", mas também existe uma maioria de pessoas de outros estratos sociais e culturais que preenchem a maior parte deste bloco da burrice ostentação, inclusive pessoas com renda significativa e educação superior e até mesmo pós graduação.
A compreensão é sistêmica, resultado de uma conjunção de fatores tais como o empobrecimento generalizado da classe média, a sobrecarga informacional, a liberdade intelectual da pós-pós modernidade, o avanço do ultraliberalismo da escola de Chicago, o avanço da teologia da prosperidade e do domínio, a insegurança climatica e econômica, só para citar alguns. Todos estes fatores interconectados e interrelacionados de uma ou mais formas, colaborando e retroalimentando, e tudo isso replicado e amplificado nas bolhas de unanimidade das redes sociais.
Deixa eu explicar…
Em 2016 eu já desconfiava que algo estava indo muito errado nas redes sociais, e decidi estudar a questão mais a fundo, tanto que ano seguinte eu iniciei um mestrado em Ciência da Informação no PPGCI/UFRJ com o objetivo de buscar uma resposta. O resultado disto foi a minha dissertação "Algoritmização das relações sociais em rede, produção de crenças e construção da realidade" defendida em Setembro de 2019, e que posteriormente foi revisada e expandida e tornou-se meu primeiro livro, O Panspectron: Como as redes sociais estão moldando a realidade, publicado em Novembro de 2022. Tanto o livro, como a dissertação fazem esta construção sistêmica, desta forma vou extrair alguns trechos e conecta-los na construção da minha narrativa.
A primeira parte a ser compreendida é o indivíduo atual, e este trecho explica bastante coisa:
Na perspectiva de situar o indivíduo, Carla Martelli (2011) situa o indivíduo hipermoderno como um individuo “narciso altruísta”, que é a expressão das contradições que dinamizam a sociedade atual. Os avanços e conquistas sociais, transformações da atualidade, e inovações sociais, estão criando na prática novos repertórios, que equivalem a novas faixas de liberdade socialmente inventada, nas quais indivíduos podem se inserir. Cada nova faixa de liberdade corresponde à desnaturalização de uma esfera da vida e sua potencial politização.
Liberdade é a “palavra de ordem” do indivíduo pós-moderno. Em lugar de segurança, muita liberdade. Os riscos a que todos estão expostos geram insegurança e esta advém, exatamente, da muita liberdade conquistada (MARTELLI, 2011).
Em “Mal-estar da pós-modernidade”, Zygmunt Bauman (2012), observa que os indivíduos pós-modernos trocaram um pouco da suas possibilidades de segurança por um tanto de liberdade. O mal-estar da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de busca do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.
E é nesse sentido que o autor observa que a insegurança sob a qual o indivíduo vive atualmente nasce do excesso de liberdade, e não da opressão.
É importante observar que esta construção do indivíduo atual não pode ser dissociada da Internet, que inclusive potencializa muitas questões que acabam corroborando para aumentar o mal estar.
Trazendo esta perspectiva para a Internet, segundo Hunt Allcott e Matthew Gentzkow (2017), como citado no capítulo anterior, a formação das “câmaras de eco” é uma preocupação que vem desde o início dos anos 2000, quando a Internet permitiu uma diversidade excessiva de pontos de vista, gerando um excesso de informação, fazendo com que indivíduos com idéias semelhantes formassem câmeras de eco.
É interessante observar, pelo que descreve os autores, a ausência do mediador, do curador de conteúdo, e a oferta excessiva de informação, levaram os indivíduos a mediarem as informações entre seus pares com idéias semelhantes. Isto explica de certa forma a polarização na Internet, mas o que se deseja destacar, é a suposta inabilidade do indivíduo humano de lidar com a liberdade excessiva. Trazendo esta leitura para o debate inicial, apresentado por Carla Martielli e por Bauman, a hipótese a ser formulada é a seguinte:
A pós-modernidade, que teve seu marco inicial em meados da década de 80, com o fim de filosofias políticas e doutrinas baseadas em alguma utopia da “sociedade do trabalho”, como descreve Paulo Ghiraldelli (2015), e com as teses mais focadas na “terra” do que no “céu”, substituindo o imaginário pelo concreto. Pavimentando desta forma a liberdade descrita por Bauman.
Esta liberdade foi potencializada pela Internet, que teve uma intensa penetração a partir de 2011, com a popularização do Facebook e dos smartphones dois anos depois. Diversos fatores, dentre eles a redução da curva de aprendizagem, e práticas comerciais como zero rating, popularizam não só o Facebook, como o Twitter, Instagram e WhatsApp. Isto levou a uma enxurrada de informações, principalmente para um público que não estava habituado com a Internet. O excedente informacional descrito por Allcott e Gentzkow, somados com a liberdade plena da pós-modernidade, provavelmente potencializaram a sensação de insegurança, e isto pode ter sido o ponto de partida para a prosperidade do retrocesso conservador que pontua a sociedade pós-pós-moderna.
Esta condição levou ao verdadeiro mal estar da pos-pos modernidade como concluo a seguir com este trecho:
Em termos objetivos, o excesso de liberdade e informação, levaram o indivíduo a resgatar os mediadores e controladores, na figura de “influencers”, ídolos, salvadores, pastores, lideres conservadores, e demais personagens elencadas por Ghiraldelli, na luta contra as “ameaças” libertárias pós-modernas, tangibilizadas no imaginário coletivo, e exploradas por aqueles que desejam o controle social.
É curioso observar como a enxurrada de informações e liberdade fez com que muitos indivíduos buscassem o oposto, um mediador monocromático e a negação desta liberdade. isso talvez explique o revés ultraconservador que estamos vivendo. Mas não devemos compreender esta conclusão através de uma perspectiva passiva, não é assim que as coisas funcionam. Oportunidades surgem e/ou são criadas e alguém se beneficia dela, e estas questões precisam ser observadas por "olhos de pássaros", ou seja, quanto maior a distância melhor para observar os atores envolvidos.
Existem grupos interessados na emergência desta onda conservadora, desde grupos fundamentalistas da teologia do domínio, passando por poderosos blocos econômicos e culturais. Os demais atores estão de olho no ganho financeiro imediato deste processo, e servem como verdadeiros mercenários a serviço do "mal maior".
Neste grupo de mercenários temos as próprias redes sociais, que faturam fortunas com as bolhas de unanimidade e suas fake news redundantes e recursivas, produzidas e disseminadas por outros mercenários que obtem ganhos políticos e financeiros. Tudo isto através de estruturas tecnológicas construídas por empresas e especialistas, sem o menor valor ético, objetivando apenas o dinheiro e algumas vezes o interesse ideológico também como foi o caso do Steve Bannon. Outro grupo importante de mercenários são as "Think Tanks" e os novos "Veículos de Imprensa Conservadora", ambos focados no revisionismo histórico e na construção de narrativas do interesse do "movimento retrogrado", fartamente financiados por capital e interesses obscuros.
Mas não acredite que esta é a visão completa, o volume e diversidade dos interesses e objetivos dos atores envolvidos dariam anos de pesquisa e dezenas ou até centenas de páginas.
É bem desconfortável acreditar que existam tantos indivíduos capazes de prejudicar a sociedade e o planeta por dinheiro, mas temos de levar em conta que este individualismo e a desumanização do outro são construções sociais de movimentos do capitalismo ultraliberal, da gamificação das relações de trabalho e da teologia da prosperidade.
Porque as redes sociais viraram ferramentas do retrocesso?
A resposta simples é: Porque elas são as melhores ferramentas para controle social.
Com o advento tecnológico, as redes sociais orgânicas como o velho Orkut, passaram a contar com conjuntos de algoritmos com o objetivo de "melhorar a experiência do usuário" no Facebook e demais redes e serviços como o Google, X, Instagram, e até o popular WhatsApp. Estes algoritmos, que são conjuntos complexos de códigos de computador que possuem funções distintas, como descrevo no capítulo 9, a Fábrica Algoritmica do Facebook, do meu livro.
Em linhas gerais, estes algoritmos estão de olho em tudo o que você faz na rede social, literalmente tudo. Se rola a página para cima, para baixo, rápido ou devagar, se para, que informação esta na tela, onde esta o cursor do mouse, se você clica, comenta, apaga o comentário, compartilha, curte e tudo mais. Pode parecer bobagem, mas a análise (modelagem) pela Inteligência Artificial da rede social destes dados, permitem por exemplo traçar o seu perfil psicológico, interesses, desejos, orientação sexual, medos, receios, além de inferir seu padrão social e traçar sua rede de relacionamento, onde mora, onde trabalha, que lugares frequenta. E quanto mais você interage com a rede social, melhor ela te conheçe, chegando ao ponto de lhe conhecer tão bem a ponto de prever seus atos e interesses.
Este processo produz o que Katarzyna Szymielewicz chama de duplo digital, um modelo seu, que muitas vezes você não gostaria que fosse tão perfeito, mas está lá a disposição das redes sociais para serem vendidos como comportamentos para anunciantes e interesses obscuros dos mercenários do retrocesso.
Esta habilidade das redes sociais lhe conhecer tão bem, a ponto de transformar seu duplo digital num produto, é o que Shoshana Zuboff chama de Capitalismo de Vigilância. E esta habilidade permite vender aos anunciantes perfis super precisos, conhecido no mercado como "micro target". Através deste mecanismo, os mercenários do retrocesso inserem informações falsas ou não, que irão atingir em cheio, seus alvos estratégicos.
Estas informações chegam aos indivíduos pelos "feeds" das redes sociais, que são produzidos por um algoritmo que decide o que você deve ver, de quem e quando, e também insere algo que irá lhe deixar desconfortável, estimulando sua reação e conseguindo a sua atenção. Não estou sendo dramático, a coisa acontece exatamente assim. E tem mais um detalhe, nesta construção do feed, a rede social esta exibindo um conteúdo exclusivo para você, de acordo com seu interesse, e isto causa uma grande falha de percepção de consenso, inconscientemente você acredita que aquelas informações fazem parte do senso comum, quando na verdade estão restritas a grupos de interesse semelhantes aos seus. Isto acaba produzindo crenças e construções distorcidas da realidade.
Agora vem a cereja do bolo, desde sempre comunicação foi poder, e antes esta produção de consensos se dava pela mídia tradicional, que habilmente direcionavam a nossa fraquezas, e nosso processo de decisão inconsciente, as heurísticas ou vieses cognitivos. Hoje as redes sociais permitem fazer isto, de forma potencializada, muito mais eficiente e pontual.
Uma das estratégias muito usadas, principalmente por mercenários do retrocesso, na produção de negacionismo e revisionismo histórico, é a agnotologia:
Robert N. Proctor (2008), da universidade de Stanford, estuda as políticas de produção e disseminação da ignorância, e deu a este estudo o neologismo “agnotologia”. O seu interesse pelo tema se deu a partir de um memorando secreto da indústria de tabaco americana, intitulado “Smoking and Health Proposal”, que foi a domínio público em 1979. O documento escrito pela empresa Brown & Williamson revelou muitas táticas empregadas pela industria do tabaco, para neutralizar os esforços antitabagistas, a começar pelo lema “Dúvida é o nosso produto”. A produção da dúvida se mostrou a forma mais eficiente de ir contra o volume de informação antitabagista que estava sendo produzido, por médicos e pesquisadores associados à renomadas instituições. Estas empresas passaram então a financiar pesquisas, a estratégia mais comum era financiar importantes pesquisas de grande impacto positivo para a sociedade, para construir uma imagem positiva da instituição e dos pesquisadores, produzindo um capital simbólico, que era então cooptado para produções com viés de interesse destas empresas, criando assim a dúvida (PROCTOR, R. N. et al, 2008).
Esta não é a única estratégia, fazem uso do que Elisabeth Noelle-Neumann define como a "Espiral do Silêncio":
Elisabeth Noelle-Neumann (1974), cientista política alemã, publicou em 1974 o artigo “The Spiral of Silence — A theory of public opinion”, baseado em suas pesquisas sobre a formação da opinião pública. Seu estudo identifica que indivíduos tendem a aceitar a opinião dominante, mesmo que esta não seja a sua, motivados pelo receio do isolamento social. Para o indivíduo, não se isolar, é mais importante que seu próprio julgamento, esta é uma condição da vida em uma sociedade humana. Há um vinculo estreito entre os conceitos de opinião pública, sanção e castigo, segundo a autora.
A idéia de usar a espiral do silêncio como tática, se materializa quando a narrativa imputada parece ser o senso comum, e as pessoas tendem a concordar, mesmo que no fundo não concordem, produzindo assim consensos artificiais.
Por outro lado, atacam consensos opostos, atacando de forma eficiente o principal interlocutor deste consenso.
Outras estratégias consistem em utilizar forma tática alguns de nossos vieses cognitivos, demonstrado pelo ciclo vicioso do viés de avaliação da informação proposto por Frederico Peres:
O processo de exposição seletiva da informação pode se dar a partir das escolhas do indivíduo, pelo resultado da mediação algorítmica das plataformas de redes sociais, por linhas editoriais de veículos de informação, ou ainda através da mediação por pares em grupos sociais presenciais ou por aplicativos de comunicação, e em geral através de um ou mais destes meios (PERES, 2020).
O processo de exposição seletiva favorece o viés de confirmação, colaborando para reforçar e sedimentar as crenças do indivíduo, em torno de determinado assunto. O indivíduo tende a aceitar informações que dialoguem com suas crenças, expectativas ou hipóteses, mesmo que sejam informações desprovidas de credibilidade (idem).
Quanto mais sedimentadas as crenças do indivíduo, ainda mais se corroboradas por seu grupo social, maior a intensidade e possibilidade de refutar qualquer informação que venha a contrapor suas crenças, configurando o viés de desconfirmação. O indivíduo tende a rejeitar informações que confrontam suas crenças, mesmo que sejam informações providas de ampla credibilidade (idem).
Quanto mais sedimentadas as crenças do indivíduo, maior a autoconfiança sobre elas, mesmo que o indivíduo não tenha proficiência no assunto do qual julga dominar. Conforme o experimento de Dunning & Kruger, estes indivíduos desconhecem a própria ignorância, e tendem a acreditar possuir domínio em assuntos que não conhecem suficientemente. O indivíduo tende reforçar o viés de desconfirmação, ao refutar informações que confrontam suas crenças, acreditando inclusive conhece-las mais profundamente que especialistas (idem).
O ciclo direciona o indivíduo à uma dissonância cognitiva, é um momento em que ele pode estar exposto a muitas informações contraditórias, tornando desconfortável refuta-las. Este momento crucial pode, sobre influência de mais exposição seletiva, levar a um novo ciclo vicioso do viés de avaliação de informação, reforçando de forma recursiva suas crenças, valores e percepção da realidade. Uma estratégia de exposição de informações contraditórias bem sucedida pode tomar um caminho oposto, levando o indivíduo à reflexão, questionado suas crenças e enfraquecendo seus vieses ligados ao negacionismo. É importante destacar que a partir deste ponto, o ciclo se repete, num processo recursivo, reforçando cada vez mais as crenças, enviesadas ou iniciando um ciclo de reflexões (idem).
Uma estratégia bem sucedida envolve romper a espiral do silêncio, e por consequência romper o ciclo vicioso do viés de avaliação de informação, identificando e confrontando os formadores de opinião, e trabalhando na percepção de maioria do grupo confrontando suas crenças a partir deste momento. Observe-se que mais uma vez a mediação algorítmica pode atuar nos dois sentidos, contra ou a favor, a depender da estratégia a ser utilizada.
A raiz da burrice ostentação
Se você está lendo com atenção ja deve estar imaginando que a raiz da burrice ostentação se dá no experimento de Dunning & Kruger, e acertou, é exatamente nele, mas colocando a narrativa dentro da espiral do silêncio, vamos entender:
Justin Kruger e David Dunning (1999) da universidade de Cornell estudaram o comportamento de um grupo de estudantes de diversas cadeiras na universidade, e concluíram que eles desconheciam a própria ignorância em determinados assuntos, e tendiam a acreditar possuir domínio em assuntos que desconheciam. Os autores explicam que as pessoas tendem a ter visões excessivamente otimistas e mal calibradas sobre si mesmas, e destacam que as que possuem conhecimento limitado em um domínio, sofram um duplo fardo: Elas comentem erros em suas conclusões, cometendo erros lamentáveis, e sua ignorância no tema rouba sua capacidade de perceber isso.
O gráfico a seguir mostra que o desconhecimento de um determinado tema, e suas particularidades e contexto, podem levar a um efeito curioso, onde a autoconfiança elevada dá ao indivíduo a sensação de pleno domínio.
O estudo concluiu que à medida que o indivíduo adquire conhecimento, sua auto confiança decai substancialmente, e só é retomada a níveis altos, quando este se torna profundo conhecedor do tema. Esta é efetivamente uma barreira a ser transposta nas estratégias de comunicação científica, de provocar o indivíduo a questionar suas convicções, e assim buscar conhecimento, enfraquecendo desta forma a barreira da ignorância que o aprisiona no topo da autoconfiança (KRUGER e DUNNING, 1999).
A ignorância do tema, produz uma barreira poderosa, e o ignorante se julga capaz de defender seu ponto de vista, justamente por desconhecer sua ignorância. A tática usadas pelos mercenários do retrocesso, é de concentrar grupos de ignorantes convictos em uma bolha ideológica a ponto de produzir consenso, e fortalecer esta convicção pela construção da espiral do silêncio em torno deles.
Estes burros convictos e orgulhosos muito dificilmente irão voltar ao ostracismo, encontraram um líder a altura e uma ideologia que dialoga com seus valores fúteis e preconceituosos, e agora empoderados e reunidos, se tornaram verdadeiros kamikazes em direção a um futuro incerto e tenebroso.
A única saída é trabalharmos urgente em um novo e poderoso iluminismo para nos salvar das trevas iminentes.